quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

O JOGO DA AMARELINHA

Em O Jogo da Amarelinha (Rayuela), romance do escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984), o leitor pula do jeito que quiser. Como um labirinto que avança e retrocede brincando com quem lê, a obra pode ser lida tanto de forma fluida, clássica, em capítulos (do 1 ao 56), compreendendo de modo claro a história de um triângulo amoroso, como também, a partir do capítulo 73, seguindo a ordem indicada pelo autor, como um mapa de leitura, com mil encadeamentos possíveis, incluindo capítulos antes ironicamente denominados "dispensáveis".

Nesse segundo modo de pular a amarelinha, o curso principal da narrativa oferece ramificações insondáveis, que partem de um comentário sobre o personagem para desaguar em uma reminiscência surreal - citações, cartas, breves episódios, textos que debatem a literatura atual, artigos sobre os personagens, desvarios, tudo vale para reforçar o caráter ambíguo e irônico da história.

Intelectual no desterro em Paris, longe de sua Argentina querida, o protagonista Horacio busca um ponto firme para seu mundo em pedaços. Tentará com os companheiros de exílio, os membros do Clube da Serpente, onde discutirá arte, filosofia e política, ao som do jazz, nos cineclubes e na ladainha existencialista.

Cortázar o faz por meio de uma geografia de alegorias. Assim esquadrinha a Paris de "Rayuela", surrealista e cheia de possibilidades - uma ponte, uma porta, eis aberto um mundo de sonhos. As pontes surgem, logo, de chofre, na apresentação direta do narrador, em primeira pessoa, no episódio que abre o romance com a busca desenfreada de Horacio por Maga.

Maga é Lucía, que Horacio encontra para novamente perder, num jogo de esconde-esconde que não termina ao final do livro. Obra aberta, O Jogo da Amarelinha não se encerra com o melancólico e necessário fracasso do protagonista, mas se abre para novos lances de dados que reordenem a arte e a sua contraparte combalida, a vida.

Na sua obra mais conhecida, Cortázar explorou os limites do conceito de realidade, construindo um gênero todo pessoal, expresso na "Teoria do Túnel" - texto em que defendia a coadunação de uma poética decorrente do surrealismo com a filosofia existencialista. Tal projeto, já posto em prática com Divertimento (1949), se realizaria por completo em O Jogo da Amarelinha, de 1963.

Estão no romance o questionamento existencial, a naturalização do imponderável e do lúdico como verdade, que se entregam no título e se explicam ao longo da narrativa, composta de fragmentos intercambiáveis.

Talvez tenha sido o próprio Cortázar quem definiu melhor o inconformismo que o levaria, na arte, a forçar as barreiras formais. "Desde pequeno, minha relação com as palavras, com a escritura, não se diferencia de minha relação com o mundo em geral. Eu pareço ter nascido para não aceitar as coisas tal como me são dadas."

(disponível em http://educarparacrescer.abril.com.br/leitura/jogo-amarelinha-643717.shtml, acesso em 30/1/14)