terça-feira, 12 de novembro de 2013

A LINGUAGEM DE LOLITA



MACHADO E SEUS DUPLOS

Antonio Carlos Secchin analisa o penúltimo romance de Machado de Assis

No centenário de Esaú e Jacó: Machado e seus duplos

É lugar-comum afirmar a existência de uma “fase madura” na ficção de Machado de Assis, a partir da publicação, em 1881, das Memórias póstumas de Brás Cubas. Mais  incomum é a ênfase, não diríamos  numa possível “terceira fase”, mas  numa inflexão da segunda, com os romances Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908). Em ambos observa-se um narrador menos cáustico   na avaliação das  mazelas humanas. A corrosiva ironia de obras anteriores cede lugar a uma (até certo ponto)  tolerante compreensão   da fragilidade terrena. Não havendo conserto para o desconcerto do mundo, melhor é assistir ao espetáculo de camarote – sem deixar, é claro, de  alfinetar,  aqui e acolá,  o mau desempenho dos atores,  num riso mais complacente do que cruel. Tal parece ser  a divisa do narrador (e importante personagem) dos derradeiros romances machadianos,  o Conselheiro Aires.

Na “Advertência” à primeira edição de Esaú e Jacó, somos informados de que, no espólio de Aires, foram localizados sete cadernos; seis deles comporiam o Memorial, e o Último (assim cognominado) corresponderia ao romance que então se publicava. Inicia-se  um sutil jogo de inversões, na medida em que o “último” (rebatizado com o nome de  Esaú e Jacó) foi o “primeiro” a surgir, enquanto os supostos seis cadernos anteriores,  do Memorial,  só  viriam à estampa quatro  anos depois. O famoso defunto-autor Brás Cubas cede voz, agora, a um  autor-defunto,  Aires.

Pela primeira vez, dois personagens nomeiam   um romance (em oposição aos títulos anteriores, centrados num personagem único,  de Helena a Dom Casmurro). A esse duplo bíblico – Esaú e Jacó – corresponderão, no texto, os gêmeos  Pedro e Paulo – duplo do duplo, portanto.

 A ironia machadiana, neste romance, não se fará muito  perceptível,  porque  se tornará menos circunstancial e mais estrutural: vai incidir não apenas  em anedotas, mas no princípio interno de organização da obra. No que tange  às peripécias,  e para não irmos além dos capítulos iniciais, lembremo-nos de que duas irmãs sobem o morro para consultar uma cabocla, esbarram em dois sujeitos, recebem o cartão de consulta número 1012, dão esmola de dois mil-réis; o narrador adverte que os oráculos têm um falar dobrado.  Santos, marido de Natividade, consulta uma segunda adivinha, de linhagem espírita.

De modo  esquemático, podemos entender o  livro como uma irônica  produção  de duplos em que os termos, em vez de serem idênticos (pois duplicados),  acabam, apesar da semelhança, ou talvez por causa dela,   tornando-se radicalmente opostos ou antagônicos entre si. O exemplo mais cabal desse  dissenso é fornecido pelos próprios gêmeos: idênticos  fisicamente, diversos  (ou até beligerantes) em todo o resto. Pedro, monarquista e recatado;  Paulo, republicano e impetuoso.  A anulação das diferenças restauraria o “dois-em-um perfeito”, a unidade primordial anterior a qualquer fratura ou cisão. A vivência da fragmentação transforma-se  assim, e insuportavelmente, na sequela de um  paraíso perdido.  A heroína  Flora, dividida no amor pelos gêmeos, representa ao mesmo tempo o desejo e o malogro da reconstituição de um tempo e espaço  inteiriços. Não por acaso, uma bem-orquestrada simbologia edênica acompanha, em baixo-contínuo,  a  caracterização da  personagem. Numa clave metafórica, Flora não produz frutos: estiola-se,  eteriza-se,  estéril, e morre à míngua do impossível. Incapaz de fazer dos gêmeos  uma só pessoa, acaba perdendo ambos, e a vida. “Inexplicável” é o adjetivo com  que  Aires tentou, em vão,  explicá-la.

Já se interpretou   Esaú e Jacó como crítica à organização social e política do Brasil na passagem do Império à República. É certo, mas é pouco. O enredo registra, de fato,  alguns dos mais cruciais eventos do final do século XIX no Brasil, mas seria decepcionante tentar informar-se deles tomando por base  o  registro factual, de escassas linhas, com que se inscrevem no livro. O turbilhão de época ecoa filtrado na dimensão dos gestos mínimos. Em Machado, o fato é (quase) nada; o olhar é tudo. Para saber de um  homem, não se precisa  ver o que ele  vê; basta,  sim,  vê-lo ver, e, sobretudo, vê-lo ver-se.  Mais do que  cronista histórico ou romancista de costumes (etiqueta  que explicitamente rejeitou em Ressurreição, de 1872),  Machado é um romancista dos “maus costumes”,  da inconstante e dúbia  consciência individual. Muitas matérias de interesse aparentemente  público são   dimensionadas unicamente  pelos dividendos de satisfação  ou ganho particular  que proporcionarão  a seus agentes.  O episódio em que o comerciante Custódio, numa  época de convulsões políticas,  não sabe se mantém no seu estabelecimento o nome de “Confeitaria do Império”,  ou se aproveita a ocasião  para logo rebatizá-lo de “Confeitaria da República”, é bem sugestivo. O que o move é o oportunismo (ou a “adequação ao contexto”, se preferirmos o cínico eufemismo); a ideologia é secundária, quando gera polêmica ou  sangra o bolso.

O romance, cujo centenário de publicação este ano se comemora, não é, certamente, o livro  machadiano de  maior ressonância junto ao público contemporâneo,  apesar de, à época do lançamento, ter obtido acolhida extremamente favorável. A rarefação do enredo (as coisas acontecem pouco, e devagar),   aliada à  costura mais distensa do tecido narrativo,  acaba   gerando um mosaico  de   episódios atomizados, que nem sempre se imbricam, frustrando os leitores ávidos de peripécias abastecidas na causalidade. O apelo amoroso-sentimental do livro também é tíbio, se contrastarmos a pudica e delicada  Flora com  suas carnais e robustas antecessoras Virgília, Sofia e Capitu. Por outro lado, a consciência metalinguística do escritor  se revela  mais aguda do que nunca.  Atentando para o nome das personagens,   logo  detectaremos predestinação  ou (com mais freqüência) ironia. Natividade encarna uma vocação relutante para tornar-se mãe. Ela, que também é Maria, casa-se com Santos, que também é José, e ambos ficam amigos do casal Batista. Perpétua nega  as leis  de perpetuação da espécie: é viúva sem filhos. O inescrupuloso Nóbrega não possui  alma nobre nem caridade cristã. A cabocla com raízes  africanas se chama Bárbara.  No capítulo XII,  o  moderado e conciliador Aires se encontra em casa de Plácida, retornando de missão no Pacífico...

  Esaú e Jacó foi o derradeiro  romance de Machado a ser  lido por sua esposa Carolina, que morreria em outubro de 1904, e a  cuja memória o  escritor ainda renderia  homenagem   no  Memorial de Aires, através da criação de  uma  personagem, dona Carmo,  inspirada na falecida mulher. Tal fonte de inspiração, às vezes contestada, não  deveria ser objeto de controvérsia, uma vez que o próprio Machado a confirmou, conforme depoimento  publicado em Alguns  escritos (1910), de Mário de Alencar.

 A imaginação de Machado produziu algumas das mais notáveis personagens femininas de nossa literatura, fascinantes pela complexidade e pela divergência de caracteres que apresentam  entre si. Com a cautela necessária para evitar-se um  biografismo redutor, seria interessante  efetuar-se um estudo detido de nossos  grandes escritores pelo prisma das marcas textuais que lhes foram impressas por   suas mulheres, verificando a  intensidade e o teor dessa presença na fatura da obra, e observando  ainda de que modo  os seres de papel ratificam  ou retificam os seres reais de que eventualmente se  teriam originado. Para nos restringirmos ao  século XIX,  e a dois gêneros literários, logo ocorreriam os nomes de Eugênia Câmara, para a poesia de  Castro Alves, e de Carolina, para a ficção de Machado. A primeira, musa arrebatadora, volúvel, parceira  vulcânica de um autor existencial  e liricamente em perpétua ebulição; Carolina,   comedida, na imagem doméstica de um amor fiel  e sem sobressaltos. As  obras de um e de outro escritor certamente  não seriam o que  foram, sem a presença  –  na graça ou na desgraça – de suas companheiras.

In: Memórias de um leitor de poesia. Rio de Janeiro: Topbooks, 2010. p.99-104.