quinta-feira, 7 de maio de 2015

A ESPERA... por Maria da Betania Galas

Em À Espera dos Bárbaros (título que remonta ao poema de mesmo nome do poeta grego Konstantino Kaváfis), o administrador de um vilarejo não nomeado, localizado nas fronteiras de um Império, também não nomeado, está prestes a completar seu tempo de serviço e, além de realizar todas as tarefas que cabem a um magistrado rural, espera apenas “merecer três linhas na Gazeta Imperial ao morrer”. “Nunca pedi mais que uma vida tranquila em tempos tranquilos”. Até que uma expedição militar liderada pelo Coronel Joll, oficial da Terceira Divisão da Guarda Civil, vem da capital do Império para investigar as possíveis invasões armadas dos nativos bárbaros, na região da fronteira. O magistrado, no entanto, não confia muito nos boatos. Suas observações mostram que: “(...) uma vez em cada geração, infalivelmente, há um surto de histeria em relação aos bárbaros. Não há uma única mulher ao longo da fronteira, que não tenha sonhado com a mão escura de um bárbaro (...), um único homem que não tenha estremecido com a imagem de um bárbaro entregando-se à orgia em sua casa (...), raptando-lhe as filhas”. A partir daí a consciência atormentada e ambígua do magistrado irá conduzir a narrativa. Os gestos e imagens construídos costuram um discurso que traz a polarização bárbaro/civilizado como uma ferida aberta, alimentada permanentemente pelo processo de mitificação do outro. Vivendo espacialmente na fronteira, o magistrado encarnará posicionamentos e agregará em seu próprio corpo - transformado ao longo de toda narrativa - as contradições das fronteiras entre tempos: o tempo do Império que os oficiais “devotos da verdade e doutores em interrogatório” defenderão até as ultimas consequências, o tempo do homem comum, que compreende as designações do Império como naturais e o tempo dos bárbaros, uma ameaça constante à civilização. As identidades dos corpos, apresentados de forma relacional, crua e não idealizada, relativizam a verdade e, na agudeza do discurso do magistrado, expõem os absurdos da razão civilizatória: “Há uma época do ano, sabe, em que os nômades nos visitam para comerciar. Pois bem: visite o mercado então, e verifique quem costuma ser roubado no peso das mercadorias, quem costuma ser enganado e maltratado, quem sofre ameaças. Verifique quem é obrigado a deixar suas mulheres no campo, por temor a ser insultadas por soldados. Veja quem são os bêbados jogados nas sarjetas, e veja quem os trata a pontapés. Contra esse desprezo pelos bárbaros, esse desprezo de que é capaz o mais humilde estalajadeiro, o mais pobre camponês, é que me venho debatendo, como juiz, há vinte anos. Como erradicar os conflitos, particularmente se se trata de conflitos fundados em nada mais substancial que a diferença de comportamentos à mesa ou a forma particular de suas pálpebras?” O magistrado iniciará sua procura por respostas a suas angústias, no enfrentamento e acolhimento da diferença, quando desenvolve uma relação ao mesmo tempo erótica e sagrada com uma moça bárbara, cega e aleijada pelos torturadores. A narrativa dos rituais vividos pelos dois antes de dormir são carregadas de sutilezas – “procuro segredos e respostas, por mais bizarros, como uma velha que lê nas folhas de chá”. No corpo da mulher bárbara ele parece buscar a si mesmo, abrindo-se para o outro: “Faço com que se sente, encho a bacia, arregaço-lhe as calças até o joelho. Agora que os pés estão juntos na água, percebo que o esquerdo é mais voltado para dentro que o direito; que, quando se levanta, precisa se apoiar nas bordas externas dos pés (...). Começo a lavá-la. Ela, por sua vez, ergue os pés para mim. Ajoelhado, massageio-lhe os dedos frouxos na espuma suave e leitosa do sabonete. Em breve, meus olhos se fecham, minha cabeça tomba. É quase um êxtase.” A expedição, organizada por ele, para devolver a moça ao seu povo é responsável pela consolidação de sua oposição ao Império. Distante das fronteiras do Império, ele finalmente consegue se relacionar sexualmente com a moça bárbara. Mas é um homem que está na fronteira, a moça o vê como uma das faces do Império e não quer voltar com ele. “Porque eu não era, como gostava de pensar, o oposto, indulgente e dado a prazeres, do frio e rígido coronel. Eu era a mentira que o império conta a si mesmo em tempos tranquilos, ele a verdade que o império conta quando sopram ventos duros”. No retorno, será recebido como um traidor, um inimigo. A partir daí o magistrado viverá a verdade do corpo. Sentirá na carne como o Império trata o outro, o inimigo, utilizando-se dos métodos mais sórdidos e cruéis para degradar, humilhar e por fim anulá-lo. Nas palavras do torturador: “A dor é a verdade. Tudo mais está sujeito a dúvida”. Será preso e torturado, viverá como um moribundo patético. Mesmo assim, o recalcitrante magistrado opera com sua indignação e perplexidade e, de sua figura esfarrapada e fétida, o torturador ouve o seguinte questionamento: “Espere! Ouça-me só mais um momento, estou sendo sincero, custa-me muito expressá-lo, pois você me apavora, nem é preciso dizer, tenho certeza de que sabe disso. Acha fácil comer depois? Imaginava que a gente precisasse lavar as mãos. Mas não bastaria uma lavagem comum, seriam necessários a intervenção de um sacerdote, um ritual de purificação, não acha?(...) Do contrário, como seria possível retornar à vida cotidiana, sentar-se, por exemplo à mesa e repartir o pão com a família e os companheiros?” Essa entonação tem tanto de revolta como de ironia. E é essa ironia que nos leva a enxergar, na obra literária de Coetzee, mais que palavras, um entre palavras, um mundo sensível, colhido por dentro da crueza dos sentimentos. Em seus livros, são personagens solitários, emocionalmente e fisicamente vulneráveis (o professor universitário de Desonra, o fotógrafo aposentado de O Homem Lento, o magistrado etc.) que nos colocam de frente para a vida dos homens. Com suas coleiras atadas por Altos Comandos ou Impérios que se confundem com destinos, são capazes de se distanciar o suficiente de suas próprias tragédias para rir na tragédia. “Nada é mais engraçado que a infelicidade”, diz Nell, personagem de Fim de Jogo de Beckett. São palavras que caberiam a muitos personagens de Coetzee. Também há um clima kafkiano nos labirintos de poder expressos por Coetzee. Entretanto, aqui não cabe toda extensão de sua obra, apenas vale lembrar que como as narrativas de Kafka, os livros de Coetzee não terminam. Por isso, para concluir esta leitura de À Espera dos Bárbaros, prefiro buscar um dos trechos do poema de Kaváfis que inspirou ou originou o livro e um ponto final que se expressa com a atualidade do discurso de nosso magistrado: “Por que não vêm os dignos oradores derramar o seu verbo como sempre? É que os bárbaros chegam hoje e aborrecem arengas, eloquências. Por que subitamente esta inquietude? (Que seriedade nas fisionomias!) Por que tão rápido as ruas se esvaziam e todos voltam para casa preocupados? Porque é já noite, os bárbaros não vêm e gente recém-chegada das fronteiras diz que não há mais bárbaros. Sem bárbaros o que será de nós? Ah! eles eram uma solução.” Vejamos como as palavras do magistrado caberiam tanto no poema de Kaváfis quanto como comentário sobre muitos acontecimentos atuais - da violência das fronteiras entre favelas e condomínios aos 3.000 quilômetros de muros que separam México e Estados Unidos, do tráfico humano no Mar Mediterrâneo aos conflitos na Faixa de Gaza, das torturas praticadas em presídios do mundo todo à discussão sobre a maioridade penal no Congresso Nacional, dos conflitos entre madeireiros e indígenas na Amazônia à luta por moradia nas grandes cidades: “Devo lhe contar o que eu , às vezes, desejo? Desejo que esses bárbaros se alcem e nos deem uma lição, para que aprendamos a respeitá-los.” Maria da Betania Galas Artista plástica, arte educadora e leitora de J. M. Coetzee