sábado, 30 de novembro de 2013
Próximo encontro do Legere: 5/12
Para finalizar os encontros de 2013, discutiremos o romance Lolita. Como sempre, das 19h30 às 21h30, na Casa das Rosas. Até lá!
terça-feira, 12 de novembro de 2013
MACHADO E SEUS DUPLOS
Antonio Carlos Secchin analisa o penúltimo romance de Machado de Assis
No centenário de Esaú e Jacó: Machado e seus duplos
É lugar-comum afirmar a
existência de uma “fase madura” na ficção de Machado de Assis, a partir da
publicação, em 1881, das Memórias póstumas de Brás Cubas. Mais incomum é a ênfase, não diríamos numa possível “terceira fase”, mas numa inflexão da segunda, com os romances Esaú
e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908). Em ambos observa-se um
narrador menos cáustico na avaliação
das mazelas humanas. A corrosiva ironia
de obras anteriores cede lugar a uma (até certo ponto) tolerante compreensão da fragilidade terrena. Não havendo conserto
para o desconcerto do mundo, melhor é assistir ao espetáculo de camarote – sem
deixar, é claro, de alfinetar, aqui e acolá,
o mau desempenho dos atores, num
riso mais complacente do que cruel. Tal parece ser a divisa do narrador (e importante
personagem) dos derradeiros romances machadianos, o Conselheiro Aires.
Na “Advertência” à primeira
edição de Esaú e Jacó, somos informados de que, no espólio de Aires,
foram localizados sete cadernos; seis deles comporiam o Memorial, e o Último
(assim cognominado) corresponderia ao romance que então se publicava.
Inicia-se um sutil jogo de inversões, na
medida em que o “último” (rebatizado com o nome de Esaú e Jacó) foi o “primeiro” a
surgir, enquanto os supostos seis cadernos anteriores, do Memorial, só
viriam à estampa quatro anos
depois. O famoso defunto-autor Brás Cubas cede voz, agora, a um autor-defunto, Aires.
Pela primeira vez, dois personagens
nomeiam um romance (em oposição aos
títulos anteriores, centrados num personagem único, de Helena a Dom Casmurro). A
esse duplo bíblico – Esaú e Jacó – corresponderão, no texto, os gêmeos Pedro e Paulo – duplo do duplo, portanto.
A ironia machadiana, neste romance, não se
fará muito perceptível, porque
se tornará menos circunstancial e mais estrutural: vai incidir não
apenas em anedotas, mas no princípio
interno de organização da obra. No que tange
às peripécias, e para não irmos
além dos capítulos iniciais, lembremo-nos de que duas irmãs sobem o morro para
consultar uma cabocla, esbarram em dois sujeitos, recebem o cartão de consulta
número 1012, dão esmola de dois mil-réis; o narrador adverte que os oráculos
têm um falar dobrado. Santos, marido de
Natividade, consulta uma segunda adivinha, de linhagem espírita.
De modo esquemático, podemos entender o livro como uma irônica produção
de duplos em que os termos, em vez de serem idênticos (pois
duplicados), acabam, apesar da
semelhança, ou talvez por causa dela,
tornando-se radicalmente opostos ou antagônicos entre si. O exemplo mais
cabal desse dissenso é fornecido pelos
próprios gêmeos: idênticos fisicamente,
diversos (ou até beligerantes) em todo o
resto. Pedro, monarquista e recatado;
Paulo, republicano e impetuoso. A
anulação das diferenças restauraria o “dois-em-um perfeito”, a unidade
primordial anterior a qualquer fratura ou cisão. A vivência da fragmentação
transforma-se assim, e
insuportavelmente, na sequela de um paraíso
perdido. A heroína Flora, dividida no amor pelos gêmeos,
representa ao mesmo tempo o desejo e o malogro da reconstituição de um tempo e
espaço inteiriços. Não por acaso, uma
bem-orquestrada simbologia edênica acompanha, em baixo-contínuo, a
caracterização da personagem.
Numa clave metafórica, Flora não produz frutos: estiola-se, eteriza-se,
estéril, e morre à míngua do impossível. Incapaz de fazer dos
gêmeos uma só pessoa, acaba perdendo
ambos, e a vida. “Inexplicável” é o adjetivo com que Aires
tentou, em vão, explicá-la.
Já se interpretou Esaú e Jacó como crítica à
organização social e política do Brasil na passagem do Império à República. É
certo, mas é pouco. O enredo registra, de fato,
alguns dos mais cruciais eventos do final do século XIX no Brasil, mas
seria decepcionante tentar informar-se deles tomando por base o
registro factual, de escassas linhas, com que se inscrevem no livro. O
turbilhão de época ecoa filtrado na dimensão dos gestos mínimos. Em Machado, o
fato é (quase) nada; o olhar é tudo. Para saber de um homem, não se precisa ver o que ele
vê; basta, sim, vê-lo ver, e, sobretudo, vê-lo ver-se. Mais do que
cronista histórico ou romancista de costumes (etiqueta que explicitamente rejeitou em Ressurreição,
de 1872), Machado é um romancista dos
“maus costumes”, da inconstante e
dúbia consciência individual. Muitas
matérias de interesse aparentemente
público são dimensionadas
unicamente pelos dividendos de
satisfação ou ganho particular que proporcionarão a seus agentes. O episódio em que o comerciante Custódio,
numa época de convulsões políticas, não sabe se mantém no seu estabelecimento o
nome de “Confeitaria do Império”, ou se
aproveita a ocasião para logo
rebatizá-lo de “Confeitaria da República”, é bem sugestivo. O que o move é o
oportunismo (ou a “adequação ao contexto”, se preferirmos o cínico eufemismo);
a ideologia é secundária, quando gera polêmica ou sangra o bolso.
O romance, cujo centenário de publicação este ano se
comemora, não é, certamente, o livro
machadiano de maior ressonância
junto ao público contemporâneo, apesar
de, à época do lançamento, ter obtido acolhida extremamente favorável. A
rarefação do enredo (as coisas acontecem pouco, e devagar), aliada à
costura mais distensa do tecido narrativo, acaba
gerando um mosaico de episódios atomizados, que nem sempre se
imbricam, frustrando os leitores ávidos de peripécias abastecidas na
causalidade. O apelo amoroso-sentimental do livro também é tíbio, se
contrastarmos a pudica e delicada Flora
com suas carnais e robustas antecessoras
Virgília, Sofia e Capitu. Por outro lado, a consciência metalinguística do
escritor se revela mais aguda do que nunca. Atentando para o nome das personagens, logo
detectaremos predestinação ou
(com mais freqüência) ironia. Natividade encarna uma vocação relutante para
tornar-se mãe. Ela, que também é Maria, casa-se com Santos, que também é José,
e ambos ficam amigos do casal Batista. Perpétua nega as leis
de perpetuação da espécie: é viúva sem filhos. O inescrupuloso Nóbrega
não possui alma nobre nem caridade
cristã. A cabocla com raízes africanas
se chama Bárbara. No capítulo XII, o
moderado e conciliador Aires se encontra em casa de Plácida, retornando
de missão no Pacífico...
Esaú e Jacó foi o derradeiro romance de Machado a ser lido por sua esposa Carolina, que morreria em
outubro de 1904, e a cuja memória o escritor ainda renderia homenagem
no Memorial de Aires,
através da criação de uma personagem, dona Carmo, inspirada na falecida mulher. Tal fonte de
inspiração, às vezes contestada, não
deveria ser objeto de controvérsia, uma vez que o próprio Machado a
confirmou, conforme depoimento publicado
em Alguns escritos (1910), de
Mário de Alencar.
A imaginação
de Machado produziu algumas das mais notáveis personagens femininas de nossa
literatura, fascinantes pela complexidade e pela divergência de caracteres que
apresentam entre si. Com a cautela
necessária para evitar-se um biografismo
redutor, seria interessante efetuar-se
um estudo detido de nossos grandes
escritores pelo prisma das marcas textuais que lhes foram impressas por suas mulheres, verificando a intensidade e o teor dessa presença na fatura
da obra, e observando ainda de que
modo os seres de papel ratificam ou retificam os seres reais de que eventualmente
se teriam originado. Para nos
restringirmos ao século XIX, e a dois gêneros literários, logo ocorreriam
os nomes de Eugênia Câmara, para a poesia de
Castro Alves, e de Carolina, para a ficção de Machado. A primeira, musa
arrebatadora, volúvel, parceira
vulcânica de um autor existencial
e liricamente em perpétua ebulição; Carolina, comedida, na imagem doméstica de um amor
fiel e sem sobressaltos. As obras de um e de outro escritor certamente não seriam o que foram, sem a presença – na
graça ou na desgraça – de suas companheiras.
In: Memórias de um leitor de poesia. Rio de
Janeiro: Topbooks, 2010. p.99-104.
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